Nos dias mais negros da Guerra Fria, Chalmers Johnson, professor da Universidade da Califórnia (Berkeley) e ocasionalmente consultor da C.I.A., criticava energicamente os que protestavam contra a Guerra do Vietnam acusando-os de desorientados.
Hoje em dia, Johnson é um herói para uma nova geração dos que protestam pela paz. Um dos críticos mais desembaraçados da administração Bush, o seu best-seller de 2000, Blowback, denuncia o efeito bumerangue que os EUA sofreram ao apoiar fundamentalistas islâmicos na década de 1980, um outro seu livro, Sorrows of Empire, é uma denúncia atempada da militarização que a política externa americana veio a assumir.
A propósito desse livro, Marc Cooper, do LA Weekly, conversou recentemente com Chalmers Johnson quando este passou por Los Angeles, a entrevista que é muito interessante reproduzo-a aqui na totalidade:
LA Weekly: A sua visão da política americana inverteu-se completamente desde a década de 1960. Mas quais os seus sentimentos acerca do seu país? Ainda pode ser patriota ao mesmo tempo em que está a ser um crítico feroz?
Chalmers Johnson: Naturalmente! Como disse Lord Byron: "Eu teria os poupado se pudesse". Quero dizer, gosto de viver aqui. Mas penso que estamos a tender para a situação em que estava a União Soviética em 1985. Se eu tivesse dito então que os soviéticos estavam a cinco anos de distância da extinção, você teria dito que passei demasiado tempo inalando substâncias exóticas em torno de Berkeley.
LA Weekly: O que provocou a sua mudança política?
Chalmers Johnson: Depois de os soviéticos, que eu pensei serem uma ameaça real, terem entrado em colapso, eu esperava uma muito maior desmobilização, uma retirada de tropas americanas, um dividendo de paz real, uma reorientação de despesas federais para necessidades internas. Ao invés disso, o nosso governo procurou imediatamente encontrar um inimigo substitutivo: a China, drogas, terrorismo, instabilidade. Qualquer coisa que justificasse este enorme aparelho da estrutura da Guerra Fria.
LA Weekly: Então onde é que isto deixa os autênticos patriotas de hoje?
Chalmers Johnson: O papel do cidadão agora é estar sempre bem-informado. Quando perguntaram a Benjamin Franklin: "O que conseguimos, uma república ou uma monarquia?". Ele respondeu: "Uma república, se você puder mantê-la". Não temos prestado atenção ao que é preciso fazer para mantê-la. Penso que fizemos um erro desastroso no sentido estratégico clássico quando, em 1991, concluímos que "havíamos vencido a Guerra Fria". Não. Nós simplesmente não a perdemos de forma tão má como os soviéticos. Nós ambos fomos atingidos pela ultrapassagem imperial (imperial overreach), nas indústrias de armamento que vieram a dominar as nossas sociedades. Permitimos que ideólogos capturassem o nosso Departamento da Defesa e nos conduzissem — numa frase que eles gostam — para uma Nova Roma. Já não somos uma potência do status quo respeitosa do direito internacional. Tornamo-nos uma potência revisionista, uma potência fundamentalmente oposta ao mundo tal como ele está organizado, à semelhança da Alemanha nazi, do Japão imperial, da Rússia bolchevique ou da China maoísta.
LA Weekly: Na verdade, a sua tese é que, desde o 11 de Setembro, os EUA deixaram de ser uma república e se tornaram um império.
Chalmers Johnson: É uma questão extremamente aberta se cruzamos o nosso Rubicão e se não há caminho de volta. Sem dúvida o mais importante direito na nossa Constituição, conforme James Madison, que escreveu grande parte do documento, é que se dá o direito de ir à guerra exclusivamente aos representantes eleitos do povo, ao Congresso. Nunca, continuava Madison, aquele direito deveria ser dado a um único homem. Mas em outubro de 2002 o nosso Congresso deu aquele poder a um único homem, para exercê-lo onde quer que ele queira, e com armas nucleares se ele assim preferir. E no mês de Março a seguir, sem qualquer consulta ou legitimidade internacional, ele exerceu aquele poder ao preparar um ataque unilateral ao Iraque. Os Bill of Rights — Artigos 4.º e 6.º — agora estão abertos a questionamento. Será que as pessoas realmente têm o direito ao habeas corpus? Estarão elas ainda seguras nos seus lares de capturas ilegais? A resposta por enquanto é não. Temos de esperar e ver o que o Supremo Tribunal decidirá quanto aos poderes deste governo que ele nomeou.
LA Weekly: Do seu estudo da história sabe que, tradicionalmente, quando falamos de império, temos em mente o modelo do colonialismo europeu — os britânicos na Índia, os franceses na Argélia e na Indochina. Certamente não é isto que quer dizer quando se refere a um império americano.
Chalmers Johnson: Por um império americano quero dizer as 725 bases militares em 138 países estrangeiros que circulam o globo, desde a Groenlândia à Ásia, do Japão à América Latina. Isto é uma espécie de base mundial — um mundo secreto, fechado, separado, onde o nosso meio milhão de soldados, empreiteiros e espiões vive bastante confortavelmente por todo o planeta. Penso que é um império. Concordo em que a unidade do imperialismo europeu era a colónia. A unidade do imperialismo americano é a base militar.
LA Weekly: Estas bases americanas são uma excrescência da política de contenção americana do tempo da Guerra Fria. Qual é o seu papel agora? Elas são apenas gordura? Ou estão ali para defender o investimento dos EUA?
Chalmers Johnson: O que elas não fazem é defender a segurança dos EUA. Elas simplesmente cresceram, tenham ou não tido valor estratégico. Hoje temos 101 bases na Coréia, apesar de a guerra ter acabado há mais de 50 anos. Uma vez criadas, os militares são infindavelmente criativos em descobrir novas funções para elas, muito tempo depois de o seu valor real ter-se evaporado. Estas bases mundiais tornam-se parte dos interesses estabelecidos que associamos não com segurança e sim com militarismo, o perigo do complexo militar-industrial contra o qual Eisenhower nos advertiu.
LA Weekly: Está a dizer que o incentivo real, aqui, é mais a autoperpetuação da burocracia militar ao invés de alguma grande estratégia lógica?
Chalmers Johnson: Exacto. Penso que Eisenhower estava certo quando dizia não reconhecer o poder injustificado da indústria de armamento, e você sabe que cada peça do Bombardeiro B-2 é construída em cada um dos estados norte-americanos continentais.
LA Weekly: Quais são os custos deste império para a democracia e a república?
Chalmers Johnson: Há o custo literal. Estamos a namorar a bancarrota. Não estamos a pagar o que é agora uma conta de US$ 750 bilhões. A apropriação da defesa é cerca de US$ 420 bilhões. Isto não inclui outros US$ 125 bilhões, que é o custo das Guerras do Afeganistão e do Iraque. Ainda há outros US$ 20 bilhões para armas nucleares no Departamento de Energia. Acrescente outros US$ 200 bilhões ou mais para pensões militares e para benefícios de saúde dos nossos veteranos. Tudo junto, isto significa três quartos de um trilhão de dólares. Estamos a colocar isto na conta, incorrendo num dos mais extraordinários orçamentos e déficits comerciais da história. Se os banqueiros da Ásia e do Japão se cansassem de financiá-los, se eles perceberem que o Euro agora é mais forte do que o dólar, então acaba tudo isto. Enfrentaríamos uma crise terrível. O maior custo é o que o público perderá, se já não o perdeu: a república, a defesa estrutural das nossas liberdades, a separação de poderes a fim de bloquear o crescimento de uma presidência ditatorial.
LA Weekly: Mas a história americana não começou em 20 de janeiro de 2001, ou no 11 de Setembro. Será que muito daquilo que descreve não é uma situação que data de pelo menos há um século ou mais? Porquê lançar as culpas de tudo isto sobre George W. Bush?
Chalmers Johnson: Sim, isto remonta há muito — a Teddy Roosevelt a adquirir colónias à Espanha. Mas Bush arrancou a máscara. Ele chegou e disse que somos uma Nova Roma, não precisamos da ONU ou de quaisquer amigos. Agora colocamos países a bater em listas. Certamente, se houvesse algum comité de direção de um projeto imperial americano ele consideraria Bill Clinton um presidente imperial muito melhor do que George W. Bush. É sempre melhor estratégia não mostrar a sua mão, adoptar uma abordagem indirecta mas saber exatamente para onde está indo.
LA Weekly: Numa recente revisão do seu livro, o escritor de esquerda Ian Williams reprova-o por acreditar demasiado na maldade dos bushistas. Williams argumenta que, ao olhar o Iraque, alguém pode concluir que ao invés de grandes imperialistas os rapazes de Bush são, ao contrário, trapalhões espetaculares.
Chalmers Johnson: Bem, não há dúvida que eles trabalharam mal no Iraque, desde não utilizar suficientes tropas a interpretar mal a inteligência, e há mais evidências disto todos os dias. Mas nunca houve um plano para deixar o Iraque porque não há intenção de deixar o Iraque. Estamos atualmente a construir 14 bases ali. Dick Cheney não pode imaginar abandonar aquele petróleo. E os militares não podem imaginar abandonar aquelas bases. Eis porque eles não podem propor um plano para deixá-las.
LA Weekly: Mas as políticas de Bush têm provocado retrocessos (backlashes) internacionais e internos. Isto torna-o esperançoso?
Chalmers Johnson: O sistema político por si só já não pode salvar a república. Mesmo que o Congresso queira exercer supervisão real, como pode ele fazê-lo quando quarenta por cento do orçamento militar é secreto? Tudo no orçamento da inteligência é secreto. O único sinal de esperança que eu vi foi há um ano atrás, quando dez milhões de pessoas manifestaram-se nas ruas pela paz. Também vimos as recentes eleições na Espanha como resposta ao que está acontecendo. Se pudermos ver isto agora nos EUA, no Reino Unido, na Itália, então talvez possamos ter esperança. Senão, logo estaremos conversando acerca da curta vida feliz da república americana.
Por Marc Cooper
Publicado no LA Weekly em 28 de Julho de 2004.
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