O OUTRO LADO DA MOEDA!!!

1.02.2007

Sobre a separação entre a Igreja e o Estado

A separação entre a Igreja e o Estado é um dos princípios basilares do Estado brasileiro e, na verdade, do moderno Estado de Direito. Embora em um primeiro instante pareça que este se refere apenas à impossibilidade de o Estado não professar nenhuma fé, ele tem outras aplicações.

A separação entre Igreja e Estado não é apenas um princípio negativo, que veda ao Estado a profissão de fé ou à Igreja de intrometer-se nos assuntos estatais; na verdade, o que ele consagra é a laicidade nas questões públicas, no sentido de que não se faz – não se deve fazer – referência a religiões ao tratar-se das questões colectivas. Se uma pessoa acredita no deus católico, outra em Ala, outra não acredita em nenhum e outra prefere Lenine, essas questões são de ordem pessoal e privada; embora em suas casas e em suas relações pessoais possam fazer proselitismo, ao tratarem dos assuntos colectivos apenas uma realidade é aceitável: a sociedade como um todo, em diferentes níveis (governos municipais, estaduais, nacionais ou a própria Humanidade).

Isso tem uma consequência clara: o Estado não pode beneficiar as diversas fés, sejam elas do carácter que forem. Não importa se os governantes são católicos, protestantes, budistas, ateus, agnósticos, comunistas, livre-pensadores; também não importa se os governantes querem satisfazer uma demanda de um grupo específico (por mais numeroso que ele possa ser). Assim, por exemplo, o apoio do Estado a festivais religiosos é errado e, na verdade, é ilegal, na medida em que, no Brasil, é inconstitucional.

No Paraná, por exemplo, o governo do estado apoiou um festival de música cristã – o que é uma aberração do ponto de vista de um Estado efectivamente republicano –, mas, agora que estamos no final do ano, os apoios oficiais às comemorações cristãs do natal multiplicar-se-ão. Onde fica o princípio republicano, conquistado há 116 anos no Brasil, da separação entre a Igreja e o Estado?

É necessário notar que a laicidade pública é a base da liberdade de pensamento e de expressão e do pluralismo social e político nas sociedades ocidentais. Assim, ao contrário de parecer que o afastamento das crenças da esfera pública diminui a importância da religião na sociedade, na verdade ela é a própria garantia de que as religiões continuarão existindo.

Como? Ora, um governo que professa uma fé, se for um governo “esclarecido”, poderá, talvez, permitir a expressão das outras crenças; todavia, governos esclarecidos são mais raros do que gostaríamos e a opressão humilhante é a regra. Exemplos recentes disso não faltam: o comunismo na antiga União Soviética, o nazismo, os regimes baathista de Saddam Hussein, dos aiatolás no Irã e o dos talibãs no Afeganistão.

Além de ser opressivo (o que, por si só, é pernicioso), um governo que professa uma fé impede que a sociedade organize-se e que viva autonomamente; para usar uma terminologia que se tem consagrado, um Estado que professa uma fé impede a manifestação da sociedade civil.

Um pouco de história nunca faz mal.

A separação entre Igreja e Estado surgiu ao longo da Idade Média como uma forma de ambos os poderes (Igreja e Estado) se policiarem mutuamente (tendo um resultado de fiscalização muito mais eficaz que a separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário), mas a retracção da religião à esfera privada surgiu a partir do século XVII, quando as violentas guerras de religião na Europa transformaram-se em guerras civis, que não raras vezes separavam até mesmo famílias.

No Brasil a separação entre a Igreja e o Estado, apesar de ter-se realizado logo no início da república, em 1890, nunca se completou e, na verdade, ela tem passado por uma regressão “lenta, gradual e segura”, de modo geral misturando hipocrisia, demagogia e (má-)fé.

Senão, vejamos: Getúlio Vargas instituiu os feriados públicos religiosos; o Marechal Castello Branco proclamou N. Sra. Aparecida “padroeira” e generalíssima do Brasil”; José Sarney incluiu o “deus seja louvado” em todas as cédulas (mantido e negritado pelo “ateu” Fernando Henrique Cardoso); o “Preâmbulo” da Constituição de 1988 fala em deus (apesar da proibição indicada no Art. 19 do mesmo documento) e quase todos os tribunais e órgãos públicos brasileiros ostentam crucifixos (que aumentam de tamanho à medida que aumenta a importância da corte ou do órgão).

Além dos factos esparsos indicados anteriormente, no Brasil recente – digamos, nos últimos 15 anos –, as manifestações de carácter religioso têm aumentado. Se elas fossem exclusivamente da sociedade civil e no âmbito religioso, não haveria nada obstar; entretanto, o que se nota é que, cada vez mais, a fé é um valor público. Por exemplo: no interior do Paraná, há alguns anos, um Prefeito tomou por mote de sua gestão o dístico “Fé e trabalho”! Todavia, não nos esqueçamos de grupos religiosos ligados a canais de televisão e a partidos políticos, no Brasil de um modo geral e no Rio de Janeiro em particular (nas últimas semanas a imprensa tem divulgado a constituição de um novo Partido Republicano, que, apesar do nome, será constituído em sua maior parte por grupos religiosos que tornam ou querem tornam a religião um tema e um valor político).
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Um outro exemplo, a partir de uma experiência pessoal: na semana passada recebi um documento de uma comissão interna da Universidade Federal do Paraná, onde trabalho; esse documento consistia em uma rápida prestação de contas da comissão, que está prestes a ser substituída por outra. Eis o que, a certa altura se escreve no documento: “Os membros da actual e última gestão agradecem em primeiro lugar a Deus que nos orientou no caminho certo”. À parte o fato de que não se sabe o que significa precisamente esse “caminho certo”, essa declaração ilustra bem o grau de decomposição do espírito republicano no Brasil. Uma comissão interna de um órgão público pura e simplesmente não pode fazer uma declaração desse tipo; se se aceita algo assim, é porque se julga legítimo que a fé seja um valor cívico – o que não é.

Fala-se muito em cidadania e direitos em nosso país e, recentemente, a palavra “republicano” voltou ao vocabulário político corrente. Pelo que vimos, essas palavras não significam muito, face aos acontecimentos quotidianos. Se queremos que este país (e a Humanidade como um todo) melhore, é bom começarmos a levar a sério o que essas palavras querem dizer – e completemos, respeitemos e aprendamos o que significa um princípio democrático consagrado faz mais de um século.

Por Gustavo Biscaia de Lacerda que é Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal do Paraná e sociólogo da mesma instituição.

2 Comments:

Blogger augustoM said...

Gostei de ler embora não esteja 100% de acordo com o autor, mas devemos aceitar a maneira de pensar no contexto brasileiro.
O laico, o religioso, o republicano, o monárquico, todos eles têm a nuance brasileira, que é uma maneira muito diferente da nossa, onde o místico e o esotérico dão o tom. Vivi e trabalhei durante dois anos e meio, no Brasil,tempo suficiente para os ver desnudados dos nossos valores e o que está atrás do palco onde a comédia do quer ser se debate com poder ser.
Já estão abertas as inscrições no meu blog para o próximo jantar. Não são admitidas ausências, especialmente dos amigos com quem gostamos de conversar.
Um abraço. Augusto

3/1/07 22:38  
Anonymous Anónimo said...

A separação entre Igreja e Estado foi na minha franca e sucinta opinião, o factor mais responsável pela civilização e humanização do mundo ocidental.

19/1/07 17:35  

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