O OUTRO LADO DA MOEDA!!!

8.22.2005

A dualidade e a ambivalência em relação a Simón Bolívar.

É um facto que todos os revolucionários sul-americanos proclamaram sempre a sua identificação com o ideário deste estadista, para estes, ele foi o grande pioneiro do combate pela unidade dos povos da América Latina, mas só muito recentemente o pensamento político de Bolívar, até pelos recentes acontecimentos na Venezuela e pelo seu regime promover abertamente as suas ideias, começou a ser tema de debate entre as novas gerações no continente e no mundo

Esse prolongado esquecimento do Bolívar pensador e estadista tem uma explicação simples, este foi um reformador social revolucionário e um anti-imperialista consequente e defensor da unidade da América, através de um federalismo entre os vários grandes estados americanos, enquanto continente, o que incomodava na Colômbia e em toda a América as forças retrógradas que ele, sobretudo nos últimos anos, combateu com coerência e tenacidade.
Liberais e conservadores, ao longo de mais de século e meio, entenderam-se tacitamente em torno de um objectivo comum: incutir no povo a ideia da existência de dois Bolívares: o primeiro o militar, merecedor do respeito e da gratidão de todos os americanos; o outro, o político, um governante incapaz, incompatível com a democracia, com vocação de tirano. A consequência é a glorificação do primeiro e a satanização do segundo.
Para a oligarquia da Grande Colômbia (que englobava a agora Venezuela, o Equador e o Panamá, alem da antiga Nova Granada) Bolivar deveria ter ido para casa quando o ultimo exército espanhol capitulou nos Andes peruanos, o Libertador, deveria ter esgotado a sua missão após Ayacucho (batalha decisiva contra os Castelhanos), nesse momento deveria ter morrido para a história, depois, na visão desta oligarquia, nasceu um vilão.
Esse retrato, pintado com as cores do ódio, é fantasista e perverso, a tese dos dois Bolivares não tem pés nem cabeça e foi forjada para denegrir o reformador social que de 1826 a 1829 se tornou o pesadelo da oligarquia através da libertação dos escravos e dos índios, da defesa dos direitos do povo como sujeito da historia, o pedagogo, o internacionalista, o líder da unidade continental contra a prepotência imperialista norte-americana e internacional que queriam estados separados e fracos, liderados por oligarquias corruptas, como de facto veio a acontecer com o afastamento deste.
Todos os detractores de Bolívar, os antigos e os actuais, coincidem em condená-lo por haver assumido a ditadura em 1828, este no entanto assumiu-a tendo como exemplo a antiga Grécia onde havia ditadores provisórios, que uma vez tendo feito as reformas deram o poder ao povo, Sólon foi um destes, não obstante o facto de eu pensar que qualquer ditadura é má, se não houver solução para controlar a anarquia existente ou desvios da elite apoiante, que era o que acontecia, acho que provisoriamente tal solução poderá ser a única que uma mente clássica, como era a do Libertador, naquele momento poderia ter pensado.

Não obstante de este acto, o de se tornar ditador, ser condenável, foi suficiente ao ler, ao ler os textos da época para me aperceber do conceito de democracia dos legisladores que então invectivaram e combateram Bolívar, chamaram-lhe «caudilho dos descamisados», «líder dos debaixo», «chefe da negrada e indiada».

O General Santander, ex-Vice-presidente de Bolívar, que se tornou o seu mais implacável adversário, deixou cair a máscara ao acusar o Libertador de desencadear «uma guerra interior na qual ganhem os que nada têm, que sempre são muitos, e que percamos nós, os que temos, que somos poucos», estas palavras acabam por funcionar como uma justificação para decisão de assunção da ditadura e da política de Bolívar.
Ao regressar a cavalo pelo Peru a caminho de Bogotá, pelos vales e mesetas da cordilheira, Bolívar sofre com o espectáculo da miséria dos povos que havia libertado, percebe que após anos de uma luta heróica pela independência esses povos viviam ainda pior do que na época da opressão espanhola, ao transmitir a Santander as reivindicações das populações escreve: «não sei como não se levantaram ainda todos estes povos e soldados ao concluírem que os seus males não vêm da guerra mas de leis absurdas».
Os cinco anos de ausência do Libertador, absorvido no Sul pela guerra contra os espanhóis, foram aproveitados pela nova classe dominante para modelar as estruturas de um Estado cujas instituições haviam sido concebidas para perpetuar e aprofundar a desigualdade social em vez de a reduzir. Os crioulos ricos e grande parte dos generais, toda uma casta de descendentes dos antigos terratenientes e “encomenderos” peninsulares, exploradores dos índios e comerciantes mobilizaram esforços para defender e ampliar privilégios e acrescentar àquilo que já tinham o poder político que antes era exercido pelos representantes da Coroa, claro que ao longo da guerra houve clivagens entre essa gente, mas quando as armas se silenciaram, a máscara dos pseudo-republicanos e pró-monárquicos imperiais (é verdade havia quem defendesse a criação de império monárquico ao exemplo do Império do Brasil e muitos outros que mesmo com a queda dos Castelhanos ficaram) caiu em pedaços, convergindo num objectivo: colocar o poder do Estado ao serviço dos seus interesses pessoais.

Os então oligarcas legisladores republicanos usavam uma fraseologia inspirada em grandes textos da Revolução Francesa e da Revolução Americana, mas usaram estas grandes palavras para criar uma «republica aérea», como dizia Bolívar, porque queriam um Estado amorfo e passivo que lhes permitisse ampliar os seus privilégios senhoriais, não concebiam a Constituição como algo criado para servir o corpo social, mas na Colômbia os oligarcas legisladores pretendiam o contrário, pensavam e agiam como se a «vontade do povo fosse a opinião deles».
Noutras cartas a Santander, Bolívar escreveu: «Tenho mil vezes mais fé no povo do que nos deputados (...) Jamais um Congresso salvou uma republica» (...) Não conheço outra opção saudável que não seja a de devolver ao povo a sua soberania primitiva, para que refaça o pacto social».

Para agravar a situação o Estado oligárquico havia criado uma administração corrompida e corruptora, que Bolívar, comparou a sanguessugas que se alimentam com o sangue humano o pacote de medidas que se seguiram ao Decreto Orgânico de Agosto de 1828, foi apresentado nos EUA e nas monarquias europeias como espelho da política autocrática de um caudilho tirânico, a imprensa norte-americana intensificou a campanha contra o Libertador, pintando-o como um ditador vingativo e sanguinário, o que inquietava os governos da Santa Aliança e o nascente imperialismo americano era o conteúdo profundamente democrático e revolucionário das medidas de Bolívar que golpeavam duramente os interesses da oligarquia, bem como defendiam acima de tudo a unidade da Grande Colômbia e a sua união federal com o estado a sul e o então Império do Brasil (quando este se transformasse numa republica), podendo se formar um contra poder aos E.U.A., nomeadamente em relação ás Antilhas e á América central que estes então cobiçavam.
Bolívar utilizou os poderes extraordinários do mandato que assumiu para virar o Estado do avesso, este deixou de ser o instrumento de defesa e reforço dos privilégios da classe senhorial para ser colocado ao serviço dos direitos, liberdades e exigências sociais do povo, o saneamento da justiça e a punição dos funcionários corruptos foi uma preocupação prioritária, começando por reduzir para metade os altos vencimentos dos membros do Congresso e, muito importante, aboliu todos os privilégios que o Estado concedia à Igreja Católica Apostólica Romana e a lei que obrigava os índios a prestar serviço militar obrigatório num regime de semi-escravidão foi revogada.

De todas as suas medidas revolucionarias a que mais indignou os grandes latifundiários foi aquela que ordenou a devolução aos índios das suas terras, como «legítimos proprietários» das mesmas e das quais os seus antepassados haviam sido expulsos pela coroa espanhola, isto independentemente dos títulos de posse apresentados pelos actuais senhores.
Várias leis promulgadas para o efeito incentivaram a indústria e o comércio e a elevação das taxas aduaneiras protegeu a produção nacional da livre concorrência com as mercadorias importadas, naquela altura esta foi uma medida importante face á invasão de produtos ingleses, americanos e holandeses, foi também revogado o monopólio da navegação no rio Madalena, a grande artéria fluvial do pais, concedido por Santander a um empresário dos EUA, foi protegida de forma a poder vestir, se necessário, «toda a América do Sul», a milenária indústria têxtil dos índios equatorianos e foram nacionalizadas as minas particulares, acabando com a quase escravidão dos índios que nestas trabalhavam, e o Estado concentrou nas suas mãos o monopólio de todas as riquezas do subsolo.
Decretos especiais visaram a protecção da natureza, nomeadamente as florestas e os grandes rios.
Na área da Educação as faculdades de Medicina de Bogotá, Caracas e Quito foram incumbidas de zelar, em cooperação com as autoridades do Estado, pela preservação das plantas medicinais úteis. Bolívar chegara à conclusão de que o primeiro dever de um governo consistia em proporcionar ao povo uma boa Educação, gratuita, o seu mestre e amigo Simon Rodriguez recebeu a autoridade e meios para reformar os estabelecimentos escolares existentes e criar outros «nos melhores edifícios», para «todas as crianças de ambos os sexos que em cada departamento estejam em estado de instruir-se em ciências e artes» (gramática, literatura, historia, etc), e o Governo decidiu adoptar os muitos milhares de crianças que haviam ficado órfãs em consequência da guerra.
A Constituição de Cucuta, estabelecia que um cidadão para ser eleitor e elegível tinha de ser proprietário ou possuir um determinado rendimento, Bolívar, não aceitou essa discriminação que ampliava a desigualdade, e aboliu-a, decretando que «Todos os cidadãos são iguais perante a lei e igualmente admissíveis para servir em todos os empregos civis, eclesiásticos e militares».

Seria infindável o rol da legislação bolivariana de carácter revolucionário e progressista, isto para a época, promulgada durante os dois breves anos da ditadura que, segundo a direita colombiana, constituiu uma tresloucada agressão à democracia, isto aconteceu porque Bolívar tinha pressa, pois sabia que era curto o seu tempo de vida útil, sentia a proximidade da morte na ruína de um corpo marcado pelos estigmas de uma vida que pela dureza lembra a dos heróis da mitologia grega, pois gastara duas décadas da existência cavalgando e combatendo pelas florestas e pantanais tropicais e pelas e altas punas andinas, transpondo com o seu exercito, cada vez mais internacionalista, não nos esqueçamos que inúmeros Maçons de Lojas europeias foram combater com este, nomeadamente italianos, franceses e holandeses.

É interessante verificar que a sua sorte o abandonou depois de que sofreu uma tentativa de assassinato politico em 28 de Setembro de 1828, e num acto de reacção violenta e suspeitando de tudo e todos, fecha todas as associações secretas, inclusive a Maçonaria, renegando-a e a todos os Maçons, que tanto o tinham ajudado na sua governação, é derrubado um pouco mais tarde sem que nenhum dos que o ajudaram acorram em seu auxilio.

Não obstante esses factos, Bolívar, viveu o suficiente para assistir, angustiado, já moribundo e afastado do poder, passando ao oriente eterno em 17 de Dezembro de 1830, ao desmoronar da sua obra, odiada pelos abutres oligárquicos, mas as sementes desta não secaram, voltando a germinar, pois nunca desapareceram da imaginação popular.

Quando Bolívar se batia pela unidade da América hispânica e índia este antecipou-se a qualquer outro na ideia de que os Estados Unidos iriam, em nome da liberdade, semear misérias no corpo das jovens republicas, a cuja a criação este se opunha, defendendo a União até ao fim, no tempo do Libertador a linguagem política era outra, mas de alguma maneira, a ditadura revolucionária de Bolívar foi inspirada pelo mesmo espírito humanista e democrático, pelo mesmo amor do povo que muitos governantes do passado, e do continente Americano, nunca tiveram, e que hoje não têm ou que não conseguem ter, só por esse facto e por o ter tentado merece o meu mais profundo respeito.